Segunda feira dia 22 de junho de 2020 o meu mundo ficou mais pequeno. Encolheu a uma dimensão assustadora que me fragilizou por dentro como nunca nada o tinha feito.
A vida é injusta, feita de momentos em que a revolta toma conta de nós de uma forma que nos ameaça a racionalidade. A perda de uma pessoa querida é um momento duro, um momento de revolta, raiva e consternação.
O sentimento de vazio que nos fica, toda a dor que nos avassala, o soluço que nos sufoca, uma parte de nós que nos é brutalmente arrancada e que sabemos ser insubstituível...
E ficamos nós. Com as nossas dúvidas, as nossas inseguranças, com um turbilhão de questões na cabeça, porque a nossa mente, essa inclemente torturadora, tudo questiona, tudo equaciona, tudo põe em causa numa fracção de segundos.
Porquê? Porquê, se existe tanta gente no mundo muito mais merecedora da morte? Que mal fizemos nós? Será que não há justiça no mundo? Qual a razão para nós ficarmos para trás? Será que vou ser capaz de continuar? Onde vou buscar forças para superar isto?
Todas estas questões e outras ideias bem piores passam pela nossa cabeça no meio do desespero. Tudo isto acompanhado de um vai e vem de choro que ora assume proporções diluvianas ou se reduz a uma pequena lágrima.
As pessoas são todas diferentes. Todas tem as suas coisas boas e as suas coisas más. Todos humanos. Todos reagimos de forma diferente à perda.
Eu não chorei.
Não chorei apesar de a minha alma estar dilacerada. Não porque não tivesse vontade. Não porque não sentisse a necessidade de o fazer. Dentro de mim algo me dizia que não era o momento de chorar.
Na minha cabeça tudo rolava a uma velocidade incrível mesmo no silêncio da igreja, apenas interrompido pelos momentos de comoção de minha mãe ao rever as caras de quem vinha prestar as suas homenagens.
Não sei se encontrarei as palavras adequadas para explicar tudo, mas apesar de muita coisa nefasta me passar pelo sentido, estavam lá, recorrentemente e firmemente impressos na minha memória, vários momentos da minha vida que retratam com uma clareza impressionante a pessoa que meu pai era para mim.
Os dias de pesca (foram tantos) e os raspanetes enquanto me ensinava "gimbrinhas já tens isso tudo enleado outra vez!"..."Puxa! Baixa a cana e puxa! Anda para trás!"..."Nuno Miguel põe o chapéu e sai de dentro de água!"..."Olha agora como se faz o nó do anzol... Dás uma laçada, esta ponta seguras, depois dás 3 voltas ao anzol e a ponta passa por dentro e já está!"
Os almoços na quinta na companhia do seu melhor amigo, que eram muitas vezes o meu melhor momento do dia e onde durante quase hora e meia esmiuçávamos até ao tutano tudo o que se tinha passado com o Benfica no dia anterior.
Os jogos do Juventude de Évora, clube do qual foi atleta e sócio com mais de 50 anos de filiação.
Os jogos de veteranos onde meu pai exibia muitas vezes o feitio e a raça com que sempre jogava (e que eu herdei).
O dia em que entrei no Bonfim pela sua mão para ver pela primeira vez o Benfica. Foi neste dia que pela primeira vez vi a Mística bem de perto e por ela fui abraçado para a vida.
Os relatos do Juventude de Évora e também os do Benfica quando os jogos não davam na TV.
A sova que levei quando na galhofa com amigos partimos a minha cama ou a única lambada que me esparramou na banheira quando soube que o professor me tinha mandado para a rua de uma aula de matemática (acho que era de matemática).
Os dias de Natal ou de festa em casa de meus pais ou em casa de meus tios, onde se falava de tudo e onde por vezes eu tinha a sorte de ouvir falar os homens acerca de África e de todas as aventuras e situações e que por lá passaram.
As fervorosas "suecadas" com o meu tio e o meu avô que ficava piurso quando era galado (quando perdia a bisca de trunfo).
Os momentos de ternura com a minha mãe que eu via muitas vezes à socapa.
O dia em que me foi deixar a Coimbra e me disse com aquela cara séria "Juízo e muito tino!", mesmo sabendo que me estava a deixar num mundo completamente novo e que o juizo e o tino só viriam muito mais tarde.
O jeito peculiar com que contava anedotas... Tudo enrolado e muitas vezes só ele se ria delas, mas de vez em quando surpreendia toda a gente e punha a sala inteira a rir.
As matanças do porco em casa de meu tio com a canalha toda à volta, dias que começavam às 5 da manhã e muitas vezes só terminavam no outro dia ao por do sol.
São muito momentos bons. Tantos que muito sinceramente na minha cabeça nem existe espaço para os maus.
Mas porque não chorei?
Talvez porque era necessário alguém não chorar. Talvez porque naquele momento específico tudo o que meu pai era, a sua fortaleza, o seu espírito impassível mesmo nos piores momentos, os seus sentimentos sempre contidos e perfeitamente controlados, o seu espírito de militar perante as situações da vida, tudo isso se revelou em mim de um assentada só.
Mas não. Não foi apenas isso.
No dia do funeral, quando fui ajudar a descer a urna para a cova, quando nada mais havia a fazer por ele e a terra começava a ser derramada em cima do seu corpo eu tive uma epifania. Foram 10s, 20s, 30s, 40s... um minuto... não sei...
Meu pai iria continuar a viver.
Na minha mãe, em mim, no meu irmão, nos seus netos, em todos aqueles que nos são próximos. Porque a vida é mesmo isso, deixamos o nosso legado nos que ficam, cabendo-lhes a eles a responsabilidade de respeitar a nossa memória e tentar superar-nos em vida.
E finalmente, ao virar costas à sua última morada...
Chorei.
VIVA O MEU PAI PORRA!
PS: Obviamente, este não é um texto sobre o Benfica. Mas é um texto sobre Benfiquistas. É quiçá uma tentativa de humilde homenagem a todos os Benfiquistas que conheço, que sofrem e sofreram com a perda de um ente querido. Mas é de certeza uma homenagem muito sincera ao meu pai, sócio 57511 do nosso Glorioso e especialmente uma homenagem muito merecida à minha mãe, o pilar da minha família, que muito sofre neste momento.
Um abraço a todos e fica a promessa de que o Benfica segue dentro de alguns dias.